10.11.10

IMAGENS DO MEU OLHAR - O TÚMULO DO REI D. FERNANDO




Foto: António, (Olhares fotografia on line)


Há três semanas deixei apontamento de uma ida a Santarém, com imagens do claustro do Convento de S. Francisco. Lá prometi relembrar as páginas em que Almeida Garrett descreve a cena impressionante da visita ao túmulo do rei D. Fernando, ali sepultado em 1383.

É um pouco longa mas vale a pena. Verdadeiro clássico da nossa Literatura, Garrett tem uma prosa intensa, emotiva, directa à sensibilidade e ao intelecto do leitor.
Estas páginas são também um fulgurante libelo contra a bruteza de um país que consente fazer de uma admirável construção carregada de História um quartel militar.

Por último convém explicar:
o túmulo do rei D. Fernando, bem como o de sua mãe, D. Constança Manuel, está agora nas ruínas do Convento do Carmo, em Lisboa. Veja-se o que diz a Wikipédia, consultada hoje:

« Já no século XIX, após a extinção do convento, é instalado na igreja e no claustro o Regimento de Cavalaria nº 4, que aqui permanecerá até meados do século XX. O antigo edifício conventual entra então num ciclo de degradação que o levaria até ao seu desolador estado actual. Esta situação, agravada por um incêndio em 1940, determinou a transladação dos túmulos de D. Fernando e de sua mãe, para o Museu Arqueológico do Convento do Carmo, em Lisboa e de D. Duarte de Menezes, para a Igreja de São João de Alporão, em Santarém, este último em 1928.

Após várias décadas fechado ao público, a Câmara Municipal de Santarém decide efectuar recuperações no monumento e abri-lo ao público em 24 de Julho de 2009, integrando-o no estatuto dos restantes monumentos da cidade. »(Wikipédia, 9 NOV 2010)

TEXTO DE ALMEIDA GARRETT
(Viagens na Minha Terra, cap. XLII, Livros de Bolso Europa América, Lisbos, s/d)

« Não chamem exagerado ao que vai escrito no fim do último capítulo; senti o que escrevi, senti muito mais do que escrevi. O que poderá haver é desacerto nas palavras, porque, em verdade, não sei explicar a impressão que me faz uma ruína neste estado. Desafinam-me os nervos, vibram-me numa discordância e dissonância insuportável. Queria ver antes estes altares expostos às chuvas e aos ventos do céu; que o sol os queimasse de dia; que à noite, à luz branca da Lua, ou ao tíbio reflexo das estrelas, piasse o mocho e sussur­rasse a coruja sobre seus arcos meio caídos.
Não me parecia profanado o templo assim, nem descaído de majestade o monumento. Podia ajoelhar-me no meio das pedras soltas, entre as ervas húmidas, e levantar o meu pen­samento a Deus, o meu coração à glória, à grandeza, o meu espírito às sublimes aspirações da idealidade. O material, o grosseiro, o pesado da vida não me vinham afligir aí.
Deus, a ideia grande do mundo; Deus, a Razão Eterna; Deus, o amor; Deus, a glória; Deus, a força, a poesia e a nobreza de alma — Deus está nas ruínas escalavradas do Coliseu, como nos zimbórios de bronze e mármore de S. Pedro.
Mas aqui!... nos pardieiros de um convento velho, con­sertado pelas Obras Públicas para servir de quartel de sol­dados, aqui não habita espírito nenhum.
Quero-me ir embora daqui!

E como? Sem ver o túmulo de el-rei Fernando? Não pode ser, é verdade. Onde está ele?
No coro alto. Subamos ao coro alto.
Oh! que não sei, de nojo, como o conte!
O belo jazigo do rei formoso e frívolo, tão dado às delí­cias do prazer como foi seu pai às austeridades da justiça, em que estado ele está!
Oh, nação de bárbaros! Oh, maldito povo de iconoclastas que é este!

O túmulo do segundo marido de D. Leonor Teles é um sarcófago de pedra branca, fina e friável, elegante e simples­mente cortada, com mais sobriedade de ornatos do que têm de ordinário os monumentos do século XV, mas de uma acabada escultura, casta e continente, como o não foi a vida do rei que aí encerraram depois de morto.
Percebem-se ainda vestígios das vivas cores em que foram induzidos os relevos da pedra branca: estilo bizantino de que não sei outro exemplar em Portugal. Este é — ou, antes, era — precioso.
Era; porque a brutalidade da soldadesca o deturpou a um ponto incrível. Imaginou a estúpida cobiça destes alanos modernos que devia de estar ali dentro algum grande haver de riquezas encantadas; talvez cuidaram achar sobre a caveira do rei a coroa real marchetada de pérolas e rubis com que fosse enterrado; talvez pensaram encontrar, apertado ainda entre as secas falanges dos dedos mirrados, aquele globo de oiro maciço que lhes figura o rei de espadas do sujo baralho de sua tarimba, e que eles têm pela indispensável e infalível insígnia do supremo império; talvez supuseram que mesmo depois de morto um rei devia ser de oiro... Enfim, quem sabe o que eles cuidaram e pensaram? O que se sabe, porque se vê, é que quiseram abrir e arrombar o túmulo. Tentaram primeiro levantar a tampa; não puderam, tão solidamente está soldada a pedra de cima ao corpo ou caixão do jazigo, que o todo parece maciço e inconsútil. Mas, neste empenho, quebraram e estalaram os lavores finos dos cantos, os caireis delicados das orlas, e a campa não cedeu: parece chumbada pelo anjo dos últimos julgamentos com o selo tremendo que só se há-de quebrar no dia derradeiro do mundo.
A cobiça estólida dos soldados não se aterrou com a religião do sepulcro, nem lhe causou atrição, ao menos, esta resistência quase sobrenatural das pedras do monu­mento. Vê-se que trabalhou ali, de alavanca e de aríete, algum possante e ponderoso pé-de-cabra; mas que trabalhou em vão muito tempo.
Desenganaram-se enfim com a tampa, e resolveram atacar, mais brutalmente, mas com mais vantagem, as paredes do sarcófago, que justamente suspeitaram de menos espessas. Assim era; e conseguiram na parede da frente abrir um rombo grosseiro, por onde entra fácil um braço todo e pode explorar o interior do túmulo à vontade.

Assim o fiz eu, que meti o meu braço por essa abertura barrada, e achei terra, pó, alguns ossos de vértebras e duas caveiras, uma de homem, outra de criança.
Não me lembra que haja memória alguma de infante que aí fosse sepultado também, segundo faziam os antigos muitas vezes, que punham os cadáveres das crianças nos jazigos dos pais, dos parentes, até de meros amigos de suas famílias.
Tive, confesso, uma espécie de prazer maligno em ima­ginar a estúpida compridez de cara com que deviam de ficar os brutais profanadores quando achassem no túmulo do rei o que só têm os túmulos — de reis ou de mendigos: ossos, terra, cinza, nada!
Por mim, estive tentado a furtar a caveira de el-rei D. Fer­nando. Se acreditasse na frenologia, parece-me que não tinha resistido. Não creio na ciência, felizmente — neste caso — para a minha consciência. Também não sei o que faria se a caveira fosse de outro homem. Mas o «fraco rei que fez fraca a forte gente», não são relíquias, as suas, que se guardem.
Oh! e quem sabe? Esta profanação, este abandono, este desacato de túmulo de um rei, ali na sua terra predilecta - D. Fernando era santareno de afeição —, não será ele o juízo severo da posteridade, a vindicta pública dos séculos, que, tardia mas ultrajante, cai enfim sobre a memória repro­vada do mau príncipe e lhe desonra as cinzas, como já lhe desonrara o nome?
Quero acreditar que tal não podia suceder aos túmulos de D. Dinis, de D. Pedro I, dos dois Joanes I e II, de...
Sim: e aonde está o de Camões? O de Duarte Pacheco aonde esteve? Que ainda é mais vergonhosa pergunta esta última.



Visível a abertura por onde Garrett terá metido o braço...


Em Portugal não há religião de nenhuma espécie. Até a sua falsa sombra, que é a hipocrisia, desapareceu. Ficou o materialismo estúpido, alvar, ignorante, devasso e disfar­çado, a fazer gala de sua hedionda nudez cínica no meio das ruínas profanadas de tudo o que elevava o espírito...
Uma nação grande ainda poderá ir vivendo e esperar por melhor tempo, apesar desta paralisia que lhe pasma a vida da alma na mais nobre parte de seu corpo. Mas uma nação pequena, é impossível; há-de morrer.
Mais dez anos de barões e de regime da matéria, e infa­livelmente nos foge deste corpo agonizante de Portugal o derradeiro suspiro do espírito.
Creio isto firmemente.
Mas ainda espero melhor todavia, porque o povo, o povo está são: os corruptos somos nós, os que cuidamos saber e ignoramos tudo.
Nós, que somos a prosa vil da Nação, nós não entende­mos a poesia do povo; nós, que só compreendemos o tan­gível dos sentidos, nós somos estranhos às aspirações sublimes do senso íntimo que despreza as nossas teorias presunçosas, porque todas vêm de uma acanhada análise que procede, curta e mesquinha, dos dados materiais, insignificantes e imperfeitos; enquanto ele, aquele senso íntimo do povo, vem da Razão divina e procede da síntese transcendente, superior e inspirada pelas grandes e eternas verdades, que se não demons­tram porque se sentem.
E eu, que escrevo isto, serei eu demagogo? Não sou.
Serei fanático, jesuíta, hipócrita? Não sou.
Que sou eu então?
Quem não entender o que eu sou, não vale a pena que lho diga...
Perdoa-me, leitor amigo, uma reflexão última no fim deste capítulo, já tão secante, e prometo não reflectir nunca mais.
Jesus Cristo, que foi o modelo da paciência, da tolerância, o verdadeiro e único fundador da liberdade e da igualdade entre os homens, Jesus Cristo sofreu com resignação e humil­dade quantas injustiças, quantos insultos lhe fizeram a ele e à sua missão divina; perdoou ao matador, à adúltera, ao blasfemo, ao ímpio. Mas, quando viu os barões a agiotar dentro do templo, não se pôde conter: pegou num azorrague e zurziu-os sem dor.»


O que resta da fachada do Convento de S. Francisco, Santarém.
O edifício deixou de ser quartel militar e foi assolado por um incêndio em 1940.
O grande especialista do período gótico, prof Mário Chicó, considerou-o o mais representativo edifício gótico em Portugal depois do Mosteiro da Batalha.

2 comentários:

Unknown disse...

E o olhar de Garret cruza-se com o nosso...

palavras cheias de tanta verdade!!!!


Beijinho.

carmen disse...

Como gostei de tudo que colocastes no teu blog. Sem palavras...
abraço de além mar...