31.1.13

UM MANIFESTO URGENTE




Imagem: http://www.oid-ido.org/article.php3?id_article=1278

A Europa: que futuro?
Não faz sentido que continuemos apegados a nacionalismos estreitos quando o Capital não tem pátria e há muito que aboliu fronteiras.
Um grupo de escritores bem conhecidos subscreveu um importante MANIFESTO que urge divulgar.
Aqui fica a ligação para o blogue onde o encontrei


TEXTO DO MANIFESTO:

http://www.bernard-henri-levy.com/lappel-des-ecrivains-pour-leurope-le-monde-le-25-janvier-2013-34438.html


MAGNÍFICO EÇA!


- Quantos males te esperam, oh desgraçado! Antes ficasses, para toda a imortalidade, na minha ilha perfeita, entre os meus braços perfeitos...
Ulisses recuou, com um brado magnífico:
- Oh deusa, o irreparável e supremo mal está na tua perfeição!
E, através da vaga, fugiu, trepou sofregamente à jangada, soltou a vela, fendeu o mar, partiu para os trabalhos, para as tormentas, para as misérias - para a delícia das coisas imperfeitas!

Eça de Queiroz
A PERFEIÇÃO, in CONTOS

27.1.13

ACORDEI UM POETA



Chamei o poeta que estava a dormir muito repimpado na prateleira três da estante velha.
Mesmo estremunhado respondeu:


Os homens práticos têm o génio poético
de deixar o desenho das mãos
no trabalho das chamas.

Os poetas não.

Não entendem a linguagem das folhas-línguas-secas
em bocas sedentas.

Vêem apenas nas árvores
perfis de labaredas e palavras
mulheres nuas ao relento
que dantes os deuses violavam
com sexos
escondidos nas pernas do vento.

José Gomes Ferreira
POESIA VI
Diabril editora, Lisboa, 1976

foto(C)J Moedas Duarte

25.1.13

GRANDE TEXTO!





Retirado DAQUI, com a devida vénia.


A REPÚBLICA DAS PUTAS

Por 
João Magueijo *


O livro de Skvorecky e o tempo da invasão da Checoslováquia pelas tropas soviéticas são o ponto de partida para João Magueijo lembrar o"sentimento de um país traído, entregue ou vendido a uma ideologia questionável" e o valor dominante do dinheiro hoje. "Antes falar de tourada", escreve o autor, no âmbito da série especial sobre os valores humanos  

Público de 11.1.13  

A expressão não é original, mas o plágio é deliberado. Quando Josef Skvorecky escreveu o livro A República das Putas, havia na então Checoslováquia o sentimento de um país traído, entregue ou vendido a uma ideologia questionável, por uma classe dominante corrupta e por políticos que eram de facto putas, metafórica e literalmente. No caso de Portugal não houve tanques a entrar pelo país e a ideologia a que fomos vendidos será a outra, supostamente oposta. Mas de resto a história é tal e qual, especialmente no que diz respeito à qualidade e moralidade dos políticos. 

E o pior é que paga o justo pelo pecador, ou pelo menos há pecadores, a nível mundial, que não pagaram nada. Até isto se resolver não me parece que faça grande sentido ser optimista, ou filosofar sobre o estado das letras e das ciências. Antes falar de tourada. 

Ainda deve haver por aí quem se lembre da Dona Branca, a autodenominada banqueira do povo. Para quem não sabe, era uma senhora que mais não fazia que comprar e vender dinheiro, fazê-lo circular, o que lhe era levado de novo era usado para pagar juros chorudos aos que já lá estavam, e cada vez havia mais. Ela arrecadava uma comissão, a coisa foi crescendo até que um dia PUM, foi tudo pelos ares. Recordo-me de uma Dona Arminda, que lavava as escadas lá do prédio, que perdeu as poupanças todas nestas andanças, ainda me lembro da senhora a chorar muito, faz-me lembrar o Portugal de hoje. E a Dona Branca inevitavelmente foi dar com os costados na prisão, coitada da senhora, estava muito avançada para a época, se fosse hoje davam-lhe um bónus de milhões, e teria uma posição de topo na Wall Street. 

 Não sejamos hipócritas, já todos recorremos aos bancos, e houve tempos em que o mundo das finanças fazia algum sentido. Precisava-se de algo agora, a ser pago com dinheiro que se iria ganhar mais tarde, os bancos tratavam da necessária máquina do tempo financeira. Em Itália vai-se a uma terriola qualquer, e lá há-de estar a Caixa Agrícola de Montemerdini, ou lá o que for: emprestava para se comprar os adubos, as sementes, as alfaias, e quando se fazia a colheita pagava-se, ficava tudo contente, belos tempos. 

Eram tempos em que o capitalismo tinha um lado quase bom, ou pelos menos paternalista. Claro que a pobreza era extrema, e deixa lá as coisas correrem mal e logo se via quem passava fome. Mas o capital nesses tempos era usado para produzir riqueza real, e o sistema financeiro apoiava o processo, conduzia a coisas que se viam, que resultavam em produtos tangíveis e reais. 

O capitalismo de hoje é bem mais tenebroso. Os jogos financeiros contemporâneos são tão abstractos e auto-referenciais que trocando a coisa por miúdos mais não são do que comprar e vender dinheiro, como fazia a Dona Branca. Por razões que nunca entendi, muitas das galinhas dos ovos de ouro, em Londres e Nova Iorque, são físicos teóricos e matemáticos falhados, ex-colegas meus em alguns casos. Temos tido acesas discussões, mas numa coisa concordamos: a teoria do caos e o Lema de Ito que se lixe, aquilo é simplesmente jogar na lotaria. Como é que trocar acções por computador ao microssegundo, como se tem vindo a propor, pode corresponder a alguma operação económica real? Aquilo é verdadeiramente a Dona Branca: uma pescadinha de rabo na boca financeira, "financiar o financiamento das finanças financiadas", num jogo bem enterrado no umbigo da Wall Street e da City de Londres, um totoloto mundial mas com um belo seguro contra perdas: quando se ganha, ganham eles; quando se perde ,pagamos todos, em cascata. E é aí que entram as tais putas, especificamente as nacionais. 

 Ao longo dos anos vimos o país a endividar-se com coisas que eram precisas e coisas que não eram. Tínhamos um serviço nacional de saúde do terceiro mundo e uma taxa de mortalidade infantil a condizer, analfabetismo e subdesenvolvimento a níveis do Subsara... e as coisas mudaram dramaticamente nos últimos 20 anos. Saí de Portugal em 1989 e sempre que voltava via algo de novo que era genuinamente preciso: portos para pescadores, estradas ao nível europeu, uma enorme expansão do ensino, etc., etc. E claro que tudo isto custa dinheiro, mas podia argumentar-se que se a Europa não queria ter um país do terceiro mundo no seu seio que o pagasse. 

 Mas onde a porca torce o rabo é que se via também uma orgia de infra-estruturas desnecessárias: túneis nas entranhas da Madeira que levavam a lado nenhum, estradas em duplicado nos cus de judas regionais, coisas tão ridículas que davam vontade de rir. Foram-se fazendo obras públicas completamente faraónicas, de novo-rico que não sabe o que há-de fazer ao dinheiro. Tornava-se óbvio que se construíam infra-estruturas, não para preparar o futuro, mas sim para alimentar o presente, numa cumplicidade corrupta entre Estado e empresas privadas, em que o último elo da cadeia era o mundo das finanças internacionais. E esses andavam entretidos com os seus jogos de totoloto, e quando a bolha rebentou lixou-se o proverbial mexilhão, tradução, nós. 

Como Skvorecky notava, as "putas" que tinham antes vendido o seu país aos nazis eram as mesmas que agora acolhiam os soviéticos (e mais tarde, muito depois de o livro ser publicado, acolheriam o capitalismo selvagem, sem que ele o soubesse). O mesmo se passa no nosso caso: não tenham dúvidas de que em tempos de fascismo os nossos primeiros-ministros teriam sido rapazes de sucesso. Mas de certa forma estamos a bater no ceguinho. Se eles (e nós, por extensão) fizeram figuras tristes e agora estamos a pagar por isso, houve quem fez pior e se está agora a rir. Os usurários mundiais nem sequer construíram túneis inúteis: construíram castelos de valores inexistentes, que continuam a crescer e a alimentar a sua ganância. Até isto se resolver falemos de tourada, porque não faz muito sentido discutir o estado da nossa sociedade, e o demais, em 2013. 

Aliás, parece-me que a nossa sociedade estaria muito bem, muito obrigado, se não fosse este "pequeno detalhe" político e financeiro. Por exemplo: a sociedade portuguesa é muito mais sã do que a inglesa. Na Inglaterra, quem abre a boca inevitavelmente vomita uma etiqueta de classe social autenticada. Os famosos sotaques britânicos fornecem informações precisas sobre a classe, uma pena não se ensinar isto nas aulas de inglês do secundário que cá se apanham. E este simples facto cria uma quase ausência de mobilidade e interacção entre as classes; pior, torna as pessoas em estereótipos da sua classe social. Por exemplo, a classe operária inglesa força-se a seguir um cliché de ignorância e estupidez, atitudes racistas e xenófobas, contra a cultura e a educação. A sua imagem de marca é falar com erros de gramática que em Portugal só um atrasado mental cometeria... assim as classes superiores os têm vindo a controlar. 

Nada disto se passa em Portugal (e já agora na Grécia, onde se encontram camponeses analfabetos a pagar a educação dos filhos em Cambridge). Ainda fui daqueles que tiveram de ir fazer a inspecção para a tropa, estava já então em Inglaterra, e o que mais me impressionou foi que entre os 500 "mancebos" de pirilau de fora que lá estavam, não se sabia de que classe era quem (tirando os casos extremos de dois grosseiríssimos labregos e de um pretendente à coroa). Ora na Inglaterra nada disto seria assim, e com graves consequências: ao contrário de Inglaterra, se há cultura e identidade neste país, elas residem precisamente na classe trabalhadora. E diria que é este o maior potencial de Portugal: temos uma sociedade muito mais saudável, em termos de identidade e de classe, apesar de todos os problemas com que nos deparamos. 

Sim, éramos um país de pobres que passou temporariamente a um país de novos-ricos. Mas agora somos um país de novos-pobres: miúdos cheios de talento desempregados há dois anos, pessoal de ponta a emigrar para o estrangeiro, médicos educados cá a colmatarem as faltas de sistema de saúde inglês... um desperdício óbvio de uma geração. Em vez de usarmos estas fontes de rendimento, deixámos os tanques financeiros entrar pelo país, para aumentar os impostos e baixar os salários, já de si entre os mais baixos da Europa. 

Não sei se haverá soluções milagrosas, mas uma quebra total com o que se tem vindo a fazer é evidentemente necessária. Lembro-me de uma senhora perguntar a um médico meu amigo se podia usar água benta para a sua enfermidade. O médico respondeu-lhe que sim, mas que a fervesse primeiro. Não me parece que doses sucessivas de banha da cobra sejam a solução dos nossos males. Muita da nossa dívida, e consequente austeridade, não é legítima, em perfeita analogia com as dívidas contraídas pelas prostitutas, e que as mantêm nas malhas dos seus donos. Se a nível mundial algo tem de ser feito para refrear os chulos financeiros, a nível nacional um corte com o passado seria um primeiro passo. Ou então que se dê o Prémio Nobel da Economia à Dona Branca. E viva a República das Putas. 

 * Físico teórico do Imperial College, em Londres

22.1.13

MERCADOS...




Tento entender as notícias que abriram os telejornais, que dão como grande "vitória para Portugal" a possibilidade de regressar aos mercados.
Vitória para Portugal?
Procuro informações (aqui, por exemplo: http://www.infopedia.pt/$mercados-financeiros) e fico ainda mais confuso.
Que vitória é esta quando a economia está exangue, o nível de impostos é absurdo e o desemprego é aterrador?
Resposta: agora já podemos endividar-nos de novo a juros mais baixos!
Curiosamente, logo a seguir ouvimos que a agência  Standard & Poor's (S&P), indiferente a esta "grande vitória" voltou a classificar os ratings de Portugal como "lixo". A razão apresentada: o risco de o Tribunal Constitucional chumbar algumas medidas do Orçamento de Estado.

Ora aí está! Parece que começo a entender...


19.1.13

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA: PRÉMIO


Prémio Fundação D. Inês de Castro 2012 para Maria Do Rosário Pedreira pelo livro POESIA REUNIDA










“ (…) Estamos perante uma visão do mundo de feição romântica, que concentra no amor a justificação da existência. É certo que o romantismo nunca deixou de influenciar a poesia portuguesa, e que os neo-confessionalismos recuperaram o tema do sofrimento passional, mas as poetas têm-se mostrado reticentes a esse discurso que o feminismo estigmatizou, acusando-o de idealizar a mulher ou mitificar o homem, tornando-os criaturas falsas, alienadas. Em autoras mais novas, o lirismo amoroso, mesmo quando é sugerido, vê-se logo ironizado ou sabotado. Nesse sentido, a poética de Maria do Rosário Pedreira parece deslocada no tempo, e assume todos os riscos «intempestivos» de um aparente confessionalismo sentimental.” (do Prefácio, de Pedro Mexia)





Não digas ao que vens. Deixa-me 
adivinhar pelo pó nos teus cabelos
que vento te mandou. É longe a
tua casa? Dou-te a minha: leio nos

teus olhos o cansaço do dia que te
venceu; e, no teu rosto, as sombras 
contam-me o resto da viagem. Anda,

vem repousar os martírios da estrada
nas curvas do meu corpo - é um
destino sem dor e sem memória. Tens

sede? Sobra da tarde apenas uma
fatia de laranja - morde-a na minha
boca sem pedires. Não, não me digas 
quem és nem ao que vens. Decido eu.



(pág.158)

16.1.13

AI SANTARÉM, SANTARÉM...

     Ao fundo, o Convento de S. Francisco, em Santarém


"Ai Santarém, Santarém! Abandonaram-te, mataram-te, e agora cospem-te no cadáver.
Santarém, Santarém, levanta a tua cabeça coroada de torres e de mosteiros, de palácios e de templos!
Mira-te no Tejo, princesa das nossas vilas, e verás como eras bela e grande, rica e poderosa entre todas as terras portuguesas." (Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra, cap.XXXVI)


     Dia chuvoso. À esquerda o planalto de S. Bento. Ao fundo, o Tejo. A estrada desce para a Ponte D. Luís, que atravessa o rio, em direcção a Ameirim.


Santarém, Clínica Dr. Rui Puga

Gostava que visses, mãe, a velha clínica em que passaste tantas horas comigo, à espera da consulta do Dr. Rui Puga. Passei lá hoje, sem ti, a prestar um tributo de gratidão ao médico oftalmologista, "o único que fazia operações ao estrabismo em Portugal nos anos 50 do séc. XX", no dizer da filha, também médica oftalmologista. A ele devo a correcção de meu estrabismo infantil, três operações de que não cobrou qualquer pagamento, em atenção à minha saudosa madrinha, Dona Mª Antónia, a quem tanto devo, também.
De tudo isto dei conta à Drª Clotilde Puga, filha do fundador da Clínica, comovidamente, como se pagasse finalmente o preito devido ao velho médico, falecido há cerca de dez anos.

Casa de D. Antónia Pitta Esteves Pires, onde viveu com seu marido, Dr. Joaquim Esteves Pires, no início da Calçada Mem Ramires, que ia dar à Porta da Atamarma.


Calcorreei as ruas da velha Scallabis lembrando o desalento de Garrett na sua viagem de 1843. O Centro Histórico, como em tantas outras cidades, está decrépito. Comércio exangue, lojas fechadas, edifícios abandonados a entrarem em ruina.
Ai Santarém, Santarém...

Fotos(C)Moedas Duarte

12.1.13

LEMBRANDO...


SERMÃO DO BOM LADRÃO

"Não são ladrões apenas os que cortam as bolsas. Os ladrões que mais merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e as legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais, pela manha ou pela força, roubam e despojam os povos.
Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros furtam correndo risco, estes furtam sem temor nem perigo.
Os outros, se furtam, são enforcados; mas estes furtam e enforcam."
Padre António Vieira

Cartoon:
http://www.filosofiahoje.com/2012/08/propriedade-e-o-estado-ladrao-sua.html

11.1.13

VIVEMOS EM "ESTADO DE SÍTIO" OU QUÊ?




Mais um prego no caixão da Pátria:

http://www.noticiasaominuto.com/politica/35075/governo-passa-a-perna-ao-parlamento#.UO_yf-Qj6So

Agora vejamos:
Os meus amigos que por aqui passam já terão estranhado a falta de referências à nossa vida política que se nota neste blogue. É verdade, cada vez me apetece menos chafurdar nessa triste realidade. Estamos atolados nela como num charco de trampa e é talvez por isso que me evado para outras paragens e não me apetece contribuir para mais desgosto na cabeça dos meus amigos que aqui continuam a vir - o que muito me desvanece.

Eu sei que há aqueles que esperam que eu, aqui, faça "combate político", lute contra o Governo e contribua para a mudança.
Do que eu duvido é da eficácia deste tipo de combate. As pessoas não precisam disso. A esmagadora maioria das que conheço quer a mudança e, mesmo que nele tenham votado, não aceita este Governo que vende o país ao desbarato. Não aceita que vivamos em Estado de Sítio  e anseia por uma solução que ponha cobro ao desastre.
Então, se assim é, para que estarei eu aqui a perorar? Prefiro partilhar outro tipo de assuntos. Todos estamos irmanados no desejo de correr com os incompetentes perigosos que tomaram de assalto o país e, também por isso, é bom lavar os olhos e os ouvidos com outras realidades mais dignas da nossa ânsia de Beleza e Dignidade. Como esta que a minha AmigaDaBeira me enviou há pouco:

http://www.youtube.com/watch?v=hawHyRLku3I

9.1.13

SETE LÁGRIMAS ( agora ao vivo)



Apesar dos defeitos inerentes da gravação "ao vivo", vale a pena ouvir.
E, se possíveL, comprar o disco DIÁSPORA.PT (passe a publicidade...), que saiu em 2008.

4.1.13

VELHOS ARTESÃOS DO ALENTEJO




Chama-se Isidro Manuel Verdasca, tem 90 anos. Faz miniaturas da vida quotidiana no mundo rural que foi o dele durante muitos anos. Veio morar para Évora e passou a usar as memórias como matéria-prima que junta à cortiça.
Para espairecer das manufacturas, toca modinhas num xilofone de garrafas, feito por ele.
Comprei-lhe uma recordação mas, entretido com as fotografias,  esqueci-me da carteira em cima da bancada. Já ia afastado, ouvi um chamamento: "Ó senhor! Ó senhor!" - Era mestre Isidro, homem honrado, que vinha a correr, com a carteira na mão.
Amanhã mando-lhe as fotografias pelo correio.

.  .  .  .  .







Nunca vi tanto chocalho junto! Foi preciso vir à antiga oficina do Sr. João Chibeles Penetra, "industrial chocalheiro", na vila de Alcáçovas.
São cerca de 3 000! Todos parecidos mas todos diferentes: no tamanho, na espessura da chapa, nas marcas gravadas, nas cintas e fivelas, nos "cágados" de madeira (antepassados das fivelas), na côr, no ano de fabrico. Só mestre João percebe a ciência dos chocalhos. Passou muitas horas no banco ou na forja, calejou as mãos nas tesouras de metal, nas sovelas, nas grosas, nas serras.
Vai nos 80 e muitos, mas anda por ali muito direito, a explicar o que só ele sabe. Não gosta que os visitantes toquem nos chocalhos, "para tocar têm de estar pendurados nas reses, para isso serviam", afugentavam os animais predadores das capoeiras- raposas, saca-rabos, doninhas - e ajudavam a localizar os que se afastavam dos rebanhos ou das manadas. Continua a explicar:
"Hoje já pouco se usam os chocalhos, as propriedades estão todas aramadas e o pastoreio é muito diferente."

Quando o sr. João já não puder abrir a porta do museu, alguém há-de tratar disso - talvez o filho, bancário na vila, apreciador da obra cultural do pai, valiosa pela preservação das memórias de outros tempos. Há que renovar a apresentação, enriquecendo-a com depoimentos gravados em som e imagem, para que não se perca a História da vida rural no Alentejo.

Sr. João, vamos tirar um boneco para a posteridade?



fotos(C) J Moedas Duarte

1.1.13

ALGUMA COISA...


Reabri hoje este livro e recordei António José Forte. Era um homem muito afável mas de rosto severo onde se misturavam doçura e dureza. Lembro-me dele, muitos anos depois de o ver - e ao Herberto Hélder -  na Biblioteca Itinerante em que trabalhava e que visitava Alpiarça uma vez por mês. ( um dia aconselhou-me a ler O Deus das Moscas, uma revelação...). 
Retiro da badana do livro:

«António José Forte (Póvoa de Santa Iria, 6 de Fe­vereiro de 1931 - Lisboa, 15 de Dezembro de 1988) é uma das mais belas, inquietantes e poderosas vozes da poesia portuguesa contemporânea. Ligado ao movimento surrealista, integrou, desde o seu início, em meados da década de 50 do século passado, o chamado grupo do Café Gelo. Foi funcionário da Fundação Calouste Gul­benkian, onde, durante mais de 20 anos desempenhou as funções de Encarregado das Bibliotecas Itinerantes.
«A voz de Forte não é plural, não é directa ou sinuosa­mente derivada, não é devedora. Como toda a poesia, a verdadeira, possui apenas a sua tradição, no caso a tradição romântica no menos estrito e mais expansivo e qualificado registo, uma tradição próximo de nós esclarecida pelo surrealismo, imemorial, dinâmica, abrin­do para trás e para diante, única maneira de entender-se uma tradição. (...) É legível nos poemas de Forte uma carga de persuasão que vem, imediata, do abrupto manejo da imagem e da metáfora funcionando como sínteses perceptivas; daí sobretudo a sua eficácia, o fascínio.» - escreve Herberto Hélder no prefácio a este livro, que é, com os dispersos e inéditos que incorpora, a edição definitiva da obra de António José Forte.
Representado em inúmeras antologias poéticas, António José Forte é também autor do livro de poesia infanto-juvenil Uma rosa na tromba de um elefante, recentemente reeditado, com desenhos de Aldina, por esta editora.»
[  2ª edição, Editora Parceria A. M. Pereira, Lisboa,2003 ]

Ao ler o POEMA ( p. 41 ) deste livro que a pintora Aldina ilustrou, ele soou-me a algo muito familiar. Fechei os olhos à procura de pistas, de associações de ideias. De onde é que eu conhecia este "Poema"? E achei: ouvi-o muitas vezes na voz do Vitorino, que o musicou e integrou no seu conhecido "Leitaria Garrett", publicado em 1984.

Vamos ouvi-lo no post abaixo.

Vitorino - "Poema" do disco "Leitaria Garrett" (LP 1984)




"Poema" de António José Forte na voz de Vitorino, num disco publicado em 1984 com o título de Leitaria Garrett, um dos grandes clássicos do cantor.



POEMA


Alguma coisa onde tu parada
fosses depois das lágrimas uma ilha
e eu chegasse para dizer-te adeus
de repente na curva duma estrada

alguma coisa onde a tua mão
escrevesse cartas para chover
e eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler
alguma coisa onde tu ao norte
beijasses nos olhos os navios
e eu rasgasse o teu retrato
para vê-lo passar na direcção dos rios

alguma coisa onde tu corresses
numa rua com portas para o mar
e eu morresse
para ouvir-te sonhar

António José Forte